segunda-feira, 27 de agosto de 2007

Mudanças na língua... parte II

A seguir uma entrevista com Professor Doutor Luiz Carlos Cagliari (meu orientador ^^) feita por um repórter da FAPESP sobre as mencionadas mudanças na ortografia do português.

Prezado Fábio,

Seguem meus comentários às questões que você levantou.


- Há base científica para as modificações contempladas pelo acordo?


As reformas ortográficas têm sido feitas sem o conhecimento científico do que vem a ser a ortografia, daí uma série de equívocos. A questão fundamental não são as regras (as bases) que mudam desse jeito ou daquele. Em primeiro lugar, é preciso saber se precisam mudar, o que justifica uma mudança. Os argumentos dados, em geral são falhos: 1) mudar a ortografia não facilita a vida de ninguém, porque a ortografia não representa a fala de ninguém. É simplesmente uma representação gráfica que permite a leitura. Não vou ler Camões na pronúncia dele, mas na minha. Se cada um faz isso, e isso é o que acontece, a ortografia não representa a pronúncia de ninguém. 2) Unificar a ortografia é um equívoco porque, apesar de seguir regras de uso, tiradas de uma tradição, a ortografia, como a linguagem, em geral, sofre de transformações no tempo e no espaço. Certamente, a escrita sofre muito menos transformações do que a fala, por isso dá a impressão de que é quase imutável. Mas, a história da ortografia de todas as línguas mostra que isto não é verdade. Veja, por exemplo, nos computadores, nos corretores ortográficos, quanto de variação existe para línguas como o Inglês, o Francês, etc. A Língua Inglesa tem uma ortografia (tradicional) britânica e uma ortografia (tradicional) americana. Então, por que precisamos ter apenas um modelo? Se eles se viram bem assim, por que precisamos criar problemas desnecessários. Os problemas diplomáticos atingem somente a Língua Portuguesa? Ou é um falso problema?

3) Com relação as ações tomadas: por ou tirar trema não representa grande coisa. Na verdade, não precisaríamos de nenhum sinal além das letras, nem acento, nem trema. Na situação atual o til seria útil, mas há outros modos (antigos) que mostram que a Língua Portuguesa poderia ser escrita também sem o til. O Inglês não tem sinais diacríticos e não cria problemas aos usuários (e facilita o uso de computador). Com relação ao hífen: em vez da grande confusão que foi colocada nas bases (regras), não poderia haver apenas uma que dissesse que palavras compostas por composição levam hífen, as por derivação não levam hífen.

4) etc.



- Alguns críticos dizem que a reforma, muito embora vá forçar uma mudança em todos os livros didáticos, em arquivos de editoras, etc, é uma reforma superficial. Ela simplificaria a ortografia, mas não chegaria a cumprir o objetivo de padronizar a língua. O que o senhor acha dessa afirmação?


A idéia de simplificar a ortografia é uma ilusão no tipo de reforma ortográfica que vem sendo proposta. Talvez a única simplificação é dizer que não se usa mais o trema (com exceção!...) ou o acento diferencial (?). Veja a confusão que existe no uso de acento gráfico em Português: há um número enorme de regras, todas desnecessárias, porque o falante sabe onde cai o acento nas palavras e quais vogais são abertas ou fechadas. Tirar uma regra ou outra não muda muito. A ortografia do Português foi padronizada em 1910 por força de lei que, como outras não são cumpridas. No caso, é um absurdo ter uma lei sobre ortografia. A Língua Portuguesa é a única que pode mandar alguém para a cadeia, se errar na grafia das palavras, porque é regida por leis e quem desobedecer comete, pelo menos, uma contravenção penal, suscetível de sanção. Basta um juiz querer. Isso é que é unificação. Por outro lado, querer tirar todas as variantes ortográficas é um ideal inútil. Basta ver os vocabulários ortográficos oficiais e encontraremos variantes (flecha / frecha; camião / caminhão; aluguel / aluguer, etc.)



- Vale a pena, na sua opinião, fazer uma reforma como essa? Pergunto isso porque, para quem vê de fora, as dificuldades de implantação das novas regras parecem grandes demais comparadas aos benefícios. Parece importante ter uma padronização para redigir documentos oficiais entre os países de língua portuguesa. Mas isso um certo número de órgãos oficiais e comerciais, enquanto a mudança da ortografia envolve todos os cidadãos. Valeria a pena causar tanta comoção?


Como disse antes, se cada país de Língua Portuguesa oficializasse que qualquer documento escrito em Língua Portuguesa pode ser aceito como documento oficial, como acontece com as outras línguas, não haveria a necessidade de achar que só podemos reconhecer como documento escrito em Português aqueles que trazem a grafia que achamos que é a única que podemos aceitar, por ser nossa. Quando eu mando um artigo para os USA procuro mandar na ortografia americana e quando mando para UK mando na ortografia britânica. Por que nós não podemos fazer o mesmo? Nunca vi um americano reclamar da ortografia britânica nem um britânico reclamar da ortografia americana. É claro que há excessos (veja os blogs), mas isso é um uso específico, não o tradicional.

Como venho dizendo há décadas, o melhor é não mexer na ortografia, não fazer leis, deixar a tradição (recomendada pelos dicionários, gramáticas, vocabulários ortográficos) fazer sua história. Hoje, temos que lidar e ler com muitos documentos antigos, escritos em outras ortografias e nada disto perturba, nem mesmo a lei que precisa desses documentos para se pronunciar em processos e coisas semelhantes.

As regras ortográficas podem ser tiradas do uso tradicional e não apenas através de leis. Os usuários agem da seguinte fora: ou sei escrever e escrevo com certeza, ou tenho dúvidas e não adiante pensar: a solução típica é olhar no dicionário e não ficar procurando regras nas gramáticas. Somente em alguns momentos da escola, essas regras são estudadas. Elas ajudam também, mas não são tão importantes quanto o fato de os usuários memorizarem como devem escrever as palavras. No total do que escrevemos, as dúvidas ortográficas dos usuários comuns não são salvas com as regras (bases), mas pelo conhecimento de outros fatores, como a etimologia, a comparação, etc.

Por outro lado, num país em que grande parte da população não lê e muitos mais pessoas nem sequer escreve (sendo alfabetizadas ou não), uma reforma ortográfica vem perturbar apenas os letrados, muito pouca gente, gente que não quer passar o vexame de não saber mais como escrever a grafia de palavras comuns...



- Entre as mudanças, quais o senhor considera mais impactantes? Alguma delas é imprescindível? Alguma é dispensável? Há diferentes motivações para as diferentes alterações?


A resposta está no que disse acima. Numa reforma, ninguém ganha e muitos perdem. Nenhuma mudança sugerida é necessária: são todas dispensáveis: podíamos ficar com o que tínhamos que não mudava nada. A grande confusão veio quando resolveram transformar a ortografia em lei, um absurdo tão grande quanto o fato de terem tornado oficial uma nomenclatura gramatical brasileira. Aberração sem tamanho.



- Parece que a maior resistência à reforma vem de Portugal. Por que isso acontece? O senhor vê, como alguns, uma "brasilificação" da língua com essa reforma?


Já estive em reunião em Portugal na qual alguns acadêmicos e escritores discutiam a unificação. As pessoas achavam a reforma totalmente desnecessária: tudo podia continuar como estava, que estava bom. Nesse sentido, esta reforma (contrariamente à de 1910) representa um gesto brasileiro contra a tradição da língua. As pessoas, de um modo geral, acham que Portugal, Brasil, etc. podem usar o sistema ortográfico em uso nos diferentes países da lusofonia ou de fora. Para uma pessoa culta, a escrita (a linguagem mais) traz as marcas da pátria, da história e isso fica prejudicado por leis que pretendem que todos sejam iguais... Os literatos são os que mais sofrem, porque a ortografia também pode ter valor estilístico, como acontece com Saramago. Os poetas concretistas deveriam e alguns agentes de propaganda deveriam ser presos, porque desrespeitam as leis da ortografia, ou será que para eles, a lei não se aplica? E para as crianças que estão se alfabetizando: não podem errar? É uma questão de lei, de cultura, de costume, de uso, de arte, ... do quê?




- A padronização poderia aquecer o mercado editorial, viabilizando comercialmente os livros brasileiros em Portugal, por exemplo?
- Um professor do Rio Grande do Sul, Cláudio Moreno, comentou o seguinte: "Assisti às mudanças em 1971, quando foi retirado o acento circunflexo diferencial de "gelo" e "coco". Os dicionários e livros de literatura infantil tiveram que ir para o lixo. É uma tolice. Só países ridículos fazem reformas ortográficas". O que o senhor acha disso?


Na verdade, o problema não está na reforma ortográfica. Alguém poderia propor alterações na grafia das palavras e se os usuários passarem a aderir, com o tempo virava tradição, como aconteceu sempre. O problema é transformar a ortografia em lei: todos os problemas são derivados desse erro inicial. Se não for oficial, a ortografia pode aparecer de modos diferentes e os livreiros não precisam jogar nada no lixo. E nossas bibliotecas: vamos jogar fora os livros escolares de nossas bibliotecas escolares porque estão com a ortografia errada? Numa dessas ações, todas as cartilhas foram jogadas fora e hoje cartilha antiga é o livro mais raro. Eu faço coleção e sei o quanto é difícil encontrar uma. Mas, sem as cartilhas, como podemos escrever uma história das cartilhas? O mesmo vale para muitos livros didáticos e infantis que se perderam...



O português muda demais? Tive uma vivência de alguns anos na França e não via grande diferença entre o francês usado correntemente e o dos livros do século 18. A língua é viva e muda. Teremos que fazer reformas eternamente conforme ela muda, ou seria menos confuso fazer como os franceses, que aparentemente (falo por observação empírica, posso estar completamente enganado) fixam a ortografia, ainda que pareça arcaica?


Apesar da longa tradição de brigas por reformas ortográficas na Língua Francesa e Inglesa, o sistema se mantém há séculos sem grandes mudanças. Poderíamos ter seguido o exemplo, mas entramos num caminho errado. Para entender a ortografia, a idéia básica é a seguinte: a escrita permite a leitura (não é transcrição fonética nem semântica) portanto basta reconhecer na escrita o que o usuário fala (em seu dialeto – é assim que lemos). Para que isso funcione foi criada a ortografia, cujo objetivo é neutralizar a variação lingüística: não interessa se você fala tia ou tchia, problema ou pobrema, ponhei... a escrita é uma só: tia, problema, pus... Desse modo, não é o alfabeto que diz que som a letra tem, mas a ortografia!!! A letra A tem o som de todos os AS falados em todos os dialetos em todas as palavras da língua. Assim, em ‘acharu’ que se escreve ACHARAM, o A tem o som de U; em ‘encontremo’, que se escreve ENCONTRAMOS , o A tem o som de E, assim como em “tchia’ que se escreve TIA tem o som de TCH, mas não em ‘tatu’, e assim por diante.



- Quanto tempo uma reforma dessas deve levar para ser assimilada pelas populações?


Com relação à reforma (e lei) de 1919, constatamos que somente na segunda metade do século XX as pessoas aderiram de fato à reforma (nem todas). As publicações (jornais, revistas, livros) também só adotaram definitivamente a reforma 50 anos depois !! No caso das reformas posteriores, a intervenção do MEC nas escolas, nos livros e nas editoras foi ameaçadora, como é hoje: ou tudo ou nada. Com relação às pessoas cultas, a reforma começa logo, por força social. Com relação à escola é sempre um problema grande para os professores e menor para os alunos (eles estão ainda aprendendo e podem aprender qualquer coisa, não precisam modificar nada que sabiam antes... dependendo do grau de escolaridade). O povo... pouco interessa. Muitos continuarão escrevendo fora de qualquer padrão tradicional ou imposto por lei, mas de acordo com hipóteses que eles fazem de como podem escrever para alguém ler e entender o que eles querem dizer..... ortografia para eles é coisa de gente que estuda...


A princípio, acho que é isso, professor. Muito obrigado por sua atenção.


Atenciosamente,


Fábio de Castro
Editor - Agência FAPESP
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Prezado Fábio,

Como você pode observar, na nossa tradição acadêmica, as pessoas conhecem muito pouco sobre a natureza, funções e usos da ortografia. Comentei apenas o que acontece agora, respondendo suas perguntas. Mas, há muita gente tentando fazer uma reforma ortográfica para transformar o sistema ortográfico em um sistema semelhante ao sistema fonológico, um sistema que eles chamam de grafemático. É uma outra loucura acadêmica, derivada de ignorância de fatos básicos sobre o que é o sistema de escrita e o que é a ortografia.

Acho que o fato de eu poder escrever deixa minhas idéias mais claras e precisas, do que acontece numa simples conversa sobre o assunto, mesmo que seja através de um e-mail.


Cordiais Saudações.


Luiz Carlos Cagliari

e-mail: lccagliari@vivax.com.br

tel. (16) 3336-3759


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